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Lugar Nenhum

Não me arrependo. Não. Nem da luz que doei, nem do veneno que bebi. Tudo se desfaz em épocas. O desespero alheio é um copo cheio que deixo transbordar. Às vezes, a vida é só um vago lembrete do que não somos. O que começa e acaba é do tempo. O resto é este silêncio, um êxtase raso, um sabor no sangue — é romance com o abismo. Nada importa. Nada. Que doce, esta queda.  

Aguardente

Em criança, um sonho: seria intacta… e a dor, o medo, em névoa desfaria. Ver a costura da razão exata quando a trama do mundo se desfia.  Pensava em criança: seria plena — e o tempo, um rio de melancolia. E os anjos pálidos, em noite fria, me fariam segredos em condena.  Desfizeram-se os anos. Olho o vão. Uma silhueta bebe o absinto, o brilho de um líquido de estrela morta e fria. …Sinto o êxtase agudo do descampado, e rio, com meu próprio veneno, às lágrimas.  

Resíduos da Alma

O olhar ficou gravado na parede escura. Eu, acima de tudo, intocável.  A noite não falava. A escuridão era um espelho sem fundo.  Até que o vento voltou e pronunciou meu nome.  E o abismo devolveu apenas o som desse nome.  Depois, o vazio. Um silêncio tão completo que parecia um perdão.  Mas nos meus dedos, a mancha da parede guardava o desenho teimoso de onde esteve o sol.  

Dezembro

O granito é um delírio mudo. A buzina, um sonho inventado. Dezembro corta o fio da alma.  No filme. Heroína de nada. O sangue e as palavras — a mesma mentira.  Não há deus nesta hora estagnada. O adeus é um buraco no coração. Sou uma poeta desprezível.  Arranco a lápide — com luvas de pelica. Meu rosto é um céu mudo.  Cansada do tudo. O telefone toca dentro do vazio.  

Fora da Casinha

O passado é um animal extinto na cortina.  Gerânios balançam na janela.  Bebemos sombras com os pés na grama.  Noite virada com meninos-dicionário.  Urso de olhos de botão na cadeira vazia.  O frio da geladeira canta.  Tudo é tão miseravelmente simples.  Amiga, anote: morrerei num sofá estofado de pelos e ressaca.  Se isso é verdade, que piada decadente — só minha pupila dilatará para a lua negra.  

Frenesi

O amor é mudo. Só retorna o que gritamos.  Inventamos o resto.  Amor é a casa em chamas onde dormimos.  É a sombra no vão da porta.  Chamas a fera e ela vem com dentes doces.  Tua boca na minha meu fio de prata partido.  Vigília no teu corpo de carne e osso.  O delírio: beijo teus lábios com a boca de todas.  Até que o fogo nos revela o único êxtase que importa:  és meu vício e minha absolvição neste inferno de brasas.  

Nosso Vício

Vago à noite. Caço. Astros e excentricidades.  Meu mundo é inverso. Homens são ervas alucinógenas.  O vento traz a lua no mar.  Amamos o veneno que nos cultiva.  Tecido de lágrimas: o sorriso é a flor mais rara.  E toda solidão perde sua ilusão.  

Oculta no Espelho

Não te busco por dicionário ou mapa, essa geografia lisa e exata. Busco o acidente feliz do teu verso, o desvio de rota, o susto, o enigma. Que a perfeição seja dos anjos mudos, que se entendem num olhar, no espelho agudo. Eu prefiro o terreno do pensamento humano, onde uma ideia pousa e outra se afana. Amo o teu quase, teu talvez e o teu acho, o jeito que pensas faz um escracho no meu conceito pronto, na parede — e por uma fresta, entra um sol que não pede. Amo o que em ti resiste à compreensão, a boca fechada, a outra dimensão. Esse não-lugar, esse vão entre nós, onde plantamos nossas tentativas de voz. Pois é no campo do mal-entendido que o nunca-dito é finalmente ouvido. E é no colapso do que planejamos dizer, que nasce a única verdade que pode valer: Somos duas originais, nunca cópias ou rascunhos, escrevendo a quatro mãos um texto sem esboço. E nesse cair de braço com o sentido, me influencio por ti, reflexo — e me acho perdida.  

Essência

Minha beleza é um hábito com sabor de vidro na boca da manhã.  Os amores eram cifras que não somei.  Minha culpa — um seixo no sapato do tempo.  Abandonei o círculo. Sou o ponto que desaba o próprio vazio.  Não serei o bordado Viva, Ame, Ria.  Sou o fio negro na costura do mundo.  

Olhando das Ondas

Na praia uma casa de luz invertida.  Meu verão bebe teu outono.  Plantamos sombras na horta vertical.  O espelho mostra um mar onde nado contra o rapé de teus anos.  O futuro é uma semente que puxamos da areia movediça.  Criamos raízes no seco.  Esta família é um cacto que floresce à meia-noite.  Nossa eternidade cabe num grão de areia que se lança na calma do vento.  

Cicatriz

Tudo se reduziu a um silêncio compartilhado. Um entendimento completo que florescia entre olhares.  O mundo nos separou com seus rios, suas distâncias, seu tempo roubado. Mas o que foi plantado não conhece a morte.  E mesmo na solidão, persiste esta cumplicidade silenciosa — a certeza de uma chama que nenhuma chuva apaga.  

Titanic

O bar é um barco de luz e som. Entrego-me ao seu ritmo áspero, aos garotos que são um só, à música que entorpece o pensamento. É um prazer que corta, um cristal que sangra amanhãs. Mas hoje sou esta constelação de restos: todas as portas abertas, todas as mãos na minha cintura. E a felicidade é este instante preciso, o sal da pele alheia, enquanto bebo, consciente, o doce veneno do acaso.  

Sombra Maligna

Inexorável cicatriz do tempo, Miséria melancólica do presente póstumo. O vazio se expande, sem pensar, sem sentido, por todo o caminho. Nada mais do que aquela árvore maligna que brotou das profundezas da terra.  

Amebas

Eu sou luz; eu mesma sou como uma sombra. E nós queimamos e não queimamos. Em um fogo, sou fria e impura. Gosto do verso maligno. Ele e eu somos amigos engraçados. Não consigo ouvir meu coração. Coração, por que você está em silêncio? Tão quieto, tão quieto, parado... Eu me tornei cruel. Apago as luzes, olho para o céu. Sangro os pés numa dança frenética, Como uma criatura rastejando e tremendo. Era mais fácil na época das Amebas.  

Fácil é o Caminho

O sonho é confuso, Espero que não seja real. Por isso, não consigo dormir. A fantasia é meu abrigo, A vergonha cresce na escuridão. O abismo ilude fácil, Preciso ser enganada. Prove meu veneno.  

Fotografia

Uma composição tão vazia. Diga que está feliz ao me ver. Que sou bonita. O que reflete nos teus olhos, afinal? Acelera o coração? Palavras vazias, desnecessárias.  

Meu Mundo

Sempre encontro um entardecer frio, cinzento, Onde o calor foge, as estrelas se calam. Sem lua vermelha, sem a tristeza do momento, Sem busca frenética, sem esperança, sem pudor. Sem beleza.